Felícia Maia fala sobre a importância da região Norte para a moda

Criadora do Amazônia Fashion Week enaltece a moda paraense e defende a valorização do artesanal

Dener Pamplona de Abreu, Lino Villaventura, André Lima. Todos talentos nascidos no Pará – e fontes de inspiração para Felícia Assmar Maia, idealizadora do Amazônia Fashion Week, que completa 10 anos em 2016. “Quando realizamos a primeira edição do evento, ninguém acreditou que daria certo”, conta. 

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Hoje, Felícia coordena o curso de Design de Moda na Estácio FAP, em Belém, e é presidente da Associação de Costureiras e Artesãs da Amazônia. Também é autora de livros como “O Pará faz moda: de Dener às passarelas do século XXI”, em parceria com a pesquisadora Isadora Rocha. Tudo o que faz visa a valorização do artesanato paraense e a proteção de suas fibras naturais, como o tururi. Em entrevista à MANEQUIM, Felícia fala sobre a importância da região Norte na moda nacional.


Como surgiu a ideia de criar o Amazônia Fashion Week?

As habilidades manuais do povo paraense e as matérias-primas da região amazônica fizeram surgir esse sonho. Criei, em 2003, o Encontro Paraense de Moda e Artesanato, que existe até hoje. Com ele veio a Associação de Costureiras e Artesãs da Amazônia, e a valorização do artesanato paraense. A intenção era inserir a região Norte no cenário nacional da moda, com uma produção autoral. Em 2007, a primeira edição do Amazônia Fashion Week recebeu 22 desfiles, além de cursos, oficinas e shows.

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Quais foram as maiores dificuldades para torná-lo realidade?

O novo sempre assusta. Não faltaram previsões pessimistas de que “isso não vai dar certo” e ainda, “Belém não está preparada para fazer moda, tampouco para consumir moda feita aqui”. Não esmoreci. Não aceitava a concepção de que o produto artesanal serve apenas como souvenir para turistas. A dificuldade foi vencer a resistência do paraense em usar o produto local – e conseguir patrocinadores.

E as conquistas?

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Muitas! Realizar nove edições do AFW demonstra que a moda com identidade amazônica conquistou seu lugar. É gratificante ver trajes de noite confeccionados com fibra de tururi; clutches bordadas com sementes ou escamas de peixe e sandálias feitas com o encauchado da borracha. O reconhecimento do valor do produto amazônico pelo mercado local, nacional e internacional é a maior conquista.

O que a moda paraense tem de diferente e como ela pode contribuir no contexto da moda brasileira?

Estilo festivo de existir e natural vocação para a moda fazem com que o paraense, em especial aquele que vive na capital, Belém, aproveite o legado da belle époque (fim do século XIX e início do século XX)– um dos mais importantes períodos do desenvolvimento econômico da cidade com o chamado ciclo da borracha-, para transitar com glamour por seus diversos lugares históricos. As matérias-primas locais e as técnicas artesanais retomadas e reinventadas permitem que designers e artesãos da cidade criem moda de uma forma autoral, demonstrando que moda é cultura, e que os criadores precisam estar preparados para saber fazer uso de nossa herança cultural. Essa pode ser a maneira de o Pará se destacar no universo global da moda.

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A última edição de 2015 do SPFW teve como tema o fazer artesanal. Fale um pouco da importância do fazer manual na moda.

Artesanato agregado à moda não é uma invenção do mundo contemporâneo, sempre esteve presente na alta costura. Aliás, a alta costura é “altamente” artesanal. Nas palavras do estilista paraense André Lima: “não podemos esquecer que a alta-costura é o artesanato de luxo”. Nas últimas décadas tem-se constatado, através de coleções apresentadas em semanas de moda no Brasil, que alguns estilistas brasileiros passaram a usar matérias-primas advindas de recursos naturais renováveis, reciclados ou reaproveitados, e foram resgatar nos “baús das vovós”, antigas técnicas tais como crochê, macramê, renda de bilro e Renascença, fazendo assim com que se fortaleça o interesse pelo artesanato aliado à moda. E isso pode ser visto na mídia pela divulgação de trajes de estilistas como Ronaldo Fraga, André Lima, Lino Villaventura, Sandra Machado e Martha Medeiros. Assim, vamos assumindo nossas tradições como nosso maior patrimônio, e o artesanato pode virar referência nacional, ou quem sabe, preferência nacional. Como um dos exemplos de como agregar valor à moda através do artesanato, cito a estilista Sandra Machado, goiana, que viveu vinte anos em Belém e que há mais de cinco anos pesquisa e faz moda em São Paulo, buscando inspiração na pesquisa de referências culturais, pesquisa essa não apenas voltada para a inspiração visual, mas também para a utilização do artesanato e das matérias primas da região amazônica, como a fibra de tururi.

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A que atribui essa revalorização que o artesanal tem experimentado no contexto da moda comercial nas últimas temporadas?

Ouso afirmar que a revalorização do fazer artesanal é uma consequência do processo de globalização que começou a tomar o mundo a partir da década 80 do século passado. À medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, as identidades locais enfraquecem podendo conduzir a uma homogeneidade cultural, ou, de forma alternativa (o que eu entendo estar acontecendo no Brasil), levar a uma resistência que tenda a fortalecer e reafirmar algumas identidades locais ou, ainda levar ao surgimento de novas identidades. Essas formas alternativas demonstram que ao romperem-se as fronteiras de sistemas culturais distintos, as identidades locais clamam por valorização, ou seja, pedem que sejam exaltadas suas manifestações culturais, dentre elas o artesanato. A cultura cabocla retratada pela habilidade de seus artesãos é um dos maiores patrimônios da Amazônia e merece ser preservada em nome da história para servir de incentivo às novas gerações de artesãos e designers.

A figura da costureira por vezes é subestimada na cadeia da moda, apesar de ser essencial. Concorda? Se sim, a que atribui esse aspecto? O que pode ser feito para que seja devidamente valorizada?

Acredito que a falta de valorização do ofício de costureira esteja ligada ao seu aprendizado no Brasil, no início do século XX, quando a sociedade, marcada pelas diferenças sociais, destinava às camadas femininas populares, sem acesso a outras formas de estudo, uma ocupação que apelava às habilidades tidas como “naturalmente” femininas.  O aumento da produção industrial na metade do século aliado à influência dos meios de comunicação trouxe mudanças significativas para a cadeia da moda: produção de roupas em série e a propaganda de sua praticidade. Essa aceleração acabou por fragmentar as tarefas e uma única pessoa deixou de ter o domínio de todo o processo de construção da roupa. No mundo globalizado de hoje, o grande diferencial na moda está na produção artesanal, o famoso hand made tão valorizado no mercado internacional. Então, a costureira volta a ser demandada como profissão fundamental para esse novo modo de produzir. E para ser valorizada, precisa estar bem capacitada para exercer o ofício, e se possível com formação acadêmica em Moda.

Dener, André Lima e Lino Villaventura levaram a moda paraense para o Brasil com sucesso. O que esses três nomes têm em comum e como podem inspirar o Estado a buscar projeção e reconhecimento nacional?

Dener foi um pioneiro, precursor da moda com identidade brasileira, já que, nas décadas de 1950 e 1960, fazia moda exclusiva, sem “copismo”, em consonância com o clima tropical de nosso país. Soube agregar bordados, recortes suntuosos e certa dramaticidade a seus vestidos, tudo mantendo o estilo clássico e elegante que o caracterizou. Criou tendências, como a renda de algodão tingida, numa época em que o processo de disseminação da moda emanava de uma única fonte: Paris. Lino e André têm a mesma genialidade, pois criam de forma ousada e livre buscando suas próprias referências.

Algumas fibras da região amazônica, como o tururi e a juta, têm sido usadas na confecção de roupas e acessórios. Qual a importância de registrar sua identificação regional?

A moda no universo da Amazônia se impõe como importante foco de pesquisa na medida em que recursos naturais, como, por exemplo, as fibras, passam a ser exportadas e conhecidas no mundo todo, e se não houver um trabalho de preservação dessa origem, talvez percam sua indicação identitária. A Indicação Geográfica, instituto jurídico previsto na Lei 9.279/96 e que se constitui numa forma especial de proteção de bens imateriais ou intangíveis dentro da seara da propriedade intelectual, tem como objetivo distinguir a origem do produto ou serviço em função das peculiaridades de sua manufatura ou fama que a área geográfica passa a ter por sua obtenção ou produção, o que, por certo, gera valor agregado tanto para o produto registrado como para a região que o detém como próprio. Por ser uma região acostumada a ver serem subtraídas suas riquezas sem desenvolver mecanismos de reação, a Amazônia precisa ser defendida. E, é claro, essa defesa deve também se dirigir à produção artesanal usando matéria prima regional. Nossa história registra casos de apropriação, por outros países, dessas matérias primas, que muitas vezes transformadas em produtos finais, chegaram ao mercado com rótulos estrangeiros que divulgavam o pioneirismo em sua utilização, como foi o caso de alguns frutos amazônicos, a exemplo do cupuaçu, registrado como marca de uma empresa japonesa no início dos anos 2000. Algum tempo antes disso, na primeira metade do século XX, a região já amargara a perda da borracha para a Malásia.

Fale um pouco sobre a Associação de Costureiras e Artesãs da Amazônia.

A Associação Costamazônia começou suas atividades em 2003. No início eram quase 30 associadas, mas com as dificuldades que apareceram no meio do caminho, o grupo reduziu, e hoje, conta com 12 participantes, dentre estilistas, costureiras e artesãs. O primeiro desfile, ainda tímido, com apenas doze looks utilizando matérias- primas da região, como as fibras de juta e tururi, aconteceu em novembro de 2004, na abertura da 2ª edição do EPAMA. Já, ali naquele desfile, começaram a colher os primeiros frutos de tamanho empenho, através do reconhecimento de seu trabalho divulgado em rede nacional no programa “Mais Você”, de Ana Maria Braga, na Rede Globo, e de importante matéria assinada por Iesa Rodrigues, na Revista de Domingo do Jornal do Brasil, em dezembro daquele ano. A Associação faz questão de manter as referências locais, mesmo quando cria roupas exclusivas com elaboradas técnicas de costura, e as estilistas não pretendem sair do Pará, mas querem ser reconhecidas como gente de moda.

Acompanha o trabalho de algum estilista (brasileiro ou estrangeiro) em especial?

Já pesquisei muito a vida e a obra de Dener, mas sou apaixonada pelo trabalho do também paraense Lino Villaventura. Um dos traços marcantes no seu trabalho é a incessante pesquisa de novos materiais para a moda, o que o tem conduzido à construção de um peculiar estilo artesanal. Em cada nova coleção, Lino surpreende pela maestria com que utiliza tramas têxteis, o que faz com que a gente o perceba como um “alquimista” do futuro.

Você é formada em Direito, mas hoje leciona moda. Como se interessou pelo assunto?

Aprendi a costurar ainda menina: cortava aqui e ali, encurtava vestidos, acrescentava babados. MANEQUIM teve papel fundamental nisso. Nas décadas de 1960 e 1970, minha mãe costurava nossas roupas em casa e a revista era companheira inseparável. Aos 14 anos, tive a ousadia de tirar um molde de um modelo do Dener Pamplona de Abreu (costureiro paraense considerado o criador da moda brasileira). Minha mãe fez o vestido azul de organza de seda pura, com o qual fui à minha primeira formatura. Um luxo, como dizia o Dener.